O Organum Gregoriano

Remontemos ao século IX. Datam desta época os primeiros textos importantes descrevendo um cantar não monódico.
Neste mesmo século o filósofo e teólogo irlandês Scot Erigena (cerca de 815 – 877), que viveu na França desde 840, descreve em sua obra De Divisione Naturae, uma modalidade de cantar em vozes superpostas sem, contudo, expor a sua técnica. Traça, porém, analogia entre as harmonias da música e a harmonia cósmica.
É provavelmente Regino de Prüm, em sua obra De Harmônica Instituitione, o primeiro a usar o termo organum para o cantar em vozes superpostas.
É, no entanto, a obra Musica Enchiriadis, durante muito tempo atribuída erroneamente a Hucbald, mas hoje tida como de autoria incerta, o documento que mais nos informa sobre a prática do organum. Sabe-se que esta obra foi redigida não depois do século IX.
O autor da obra Musica Enchiriadis descreve dois tipos de organun (ou diafonia, termo equivalente). No primeiro as vozes cantam invariavelmente em quintas ou quartas paralelas ou, no caso de duas ou mais vozes, em acordes contendo somente intervalos de oitava, quinta e quarta. Eis um exemplo:
Na verdade, tal maneira de cantar não permite falar ainda em polifonia, termo que significa independência de vozes superpostas. Trata-se de faixas melódicas.
O segundo tipo de organum já apresenta um certo grau de independência entre as vozes pois aparecem, ao lado do movimento paralelo, os movimentos obliquo e contrário.
Notemos que nos dois exemplos o canto dado, pertencente ao repertório do canto gregoriano, figura na parte superior (vox principalis). A parte inferior era denominada vox organalis. Este segundo tipo de organum constitui verdadeiramente o começo da polifonia, pois nele surgem os primeiros sinais de independência entre as vozes. O valor melódico da vox organalis, contudo, é quase nulo ainda.
Escassas são as modificações sofridas por esta polifonia rudimentar durante os dois séculos seguintes. Se compararmos os dois tipos de organum descritos acima com a diafonia de Guido D’Arezzo (monge beneditino, nascido em 995 perto de Paris e falecido em 1050 em Arezzo, Itália), notaremos o predomínio do movimento contrário entre as vozes, o que significa, sem dúvida, um passo a mais rumo à independência das vozes. De fato, se duas vozes caminham paralelas, conservando uma distância fixa entre elas, não temos propriamente duas melodias distintas, mas sim uma faixa melódica. Se uma das vozes mantiver a mesma altura enquanto a outra subir e descer, já existe um começo de independência. É, no entanto, o movimento contrário das vozes que confere a estas um máximo de independência melódica.
Embora predomine neste exemplo o movimento contrário entre as vozes, a conquista da independência das linhas melódicas está apenas a meio caminho: apesar de cada voz seguir o seu próprio caminho, cada uma está amarrada à outra pelo ritmo. Diremos que há uma independência melódica mas não independência rítmica.
Outro aspecto a observar na diafonia é que o cantus firmus – é a designação da melodia do canto gregoriano sobre a qual foi construída a outra melodia em contraponto – está agora na voz inferior. A polifonia é aqui um contraponto nota-contra-nota ou em latim: punctus-contra-punctum
Fonte: Kiefer, Bruno – História e Significado das Formas Musicais, São Paulo, 1968 (no livro não constam informações de editora), p. 8 a 1
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